Estava ali, sentado no chão,
aquele menino que tinha olhos brilhantes e molhados. Sua pequenez, sua postura
e a tímida exploração da pequena sala mostravam quão singela era a doçura que
havia naquele “clientinho”. Estava ali e não entendia o porquê. Explicar quem
era “A psicóliga”, como conseguia se
referir à sua psicoterapeuta, parecia distante da real compreensão daquele
menino que só concordava acenando que sim.
Teve medo de ficar com
aquela estranha, medo que a mãe saindo da sala o deixasse com aquela estranha,
medo do estranho que era aquilo tudo. Psicoterapia é coisa de dar medo até
mesmo em adulto!
Tinha oito anos. Há pouco
conheceu na prática o que seria ter uma mãe para chamar de sua. E um pai! Há
seis anos viveu em abrigo, ou Lar, como costumavam chamar a Instituição que
recebe crianças que foram separadas da família por decisão judicial, pois estão
em situação de risco. Risco de viver com os pais. Não entendia quais riscos
poderia correr com eles, mas o risco de não ter nenhum ele conhecia muito bem.
Convivia com o medo e a falta.
Quando finalmente foi
adotado, sentia tanta alegria de ter sua esperança realizada, tantas esperanças
novas que podiam tornar-se reais, que tinha medo. Tanto medo! E agora, que
tinha todos ali, pai, mãe, família, o que ele ia fazer? Como se comportar, como
ser filho? Ter casa, um lar de verdade, um quarto, cama, brinquedos só seus,
escola. Agora que as palavras tinham significado - lar, meu, nosso, família,
limite, esperança – era difícil colocar tudo no lugar, sentimentos,
comportamentos, relações, qual é o meu lugar no coração deles?
Então estava na escola e foi
lá que os medos que eram grandes ficaram fortes... e brancos. Eram todos
brancos. Professores, alunos, pais, paredes, todos brancos! E como não podia
ser (mais) diferente, todos olhavam para ele. Em um instante, ele que até pouco
tempo não tinha nenhum olhar, agora tinha todos. Medo. Era como se fosse o
eclipse de toda aquela claridade, chamando a atenção de todos por ser negro,
por ser um satélite tão pequeno e sem luz capaz de manchar o brilho de um astro
vibrante e cândido. Sentiu-se ainda menor, diminuindo, diminuído. Ensimesmou. O
mundo infantil (o interno e o externo) pode ser muito cruel.
E ali estou eu, “A psicóliga”,
olhando aquele menino buscar com os olhos o seu lugar no tapete, o palco
psicodramático, sem brinquedos. Seus olhos disparam para a porta quando ela
está a fechar. Medo. Na cabecinha dele, o pensamento “- Será que serei
abandonado mais uma vez?”. Pergunto se deseja que eu deixe a porta aberta e o
convido para dar uma olhadinha para a sala de espera e certificar-se que sua
mãe o espera, e que estará lá, até o fim. Sua mão miúda toca a minha, leve,
fria. Confirma que sua mãe está lá e eu conquisto um ponto de confiança.
-Vamos brincar?
Seus olhos percorrem a sala
em busca de brinquedos, e seu suave despertar de alegria se transforma em
dúvida: -Com o quê?
Explico para ele que ali
podemos brincar do que quisermos. Podemos ser quem quisermos, em qualquer
tempo, passado, presente ou futuro. Podemos ser pessoas, ou alienígenas, como
lá fora, na vida real, mas que principalmente, podemos ser também as pessoas e
os alienígenas que quisermos ser, com poderes especiais ou simplesmente,
diferentes. Não demora muito e logo
estamos representando papéis imaginários da vida real. Surgem lobos-maus,
mundos a serem conquistados com guerras difíceis, demoradas, que por vezes
tinham que continuar na sessão seguinte, mas que na sessão seguinte não tinham
mais sentido. Reis, aviões, esconderijos. Falamos dos machucados, das
brincadeiras, dos novos colegas.
Neste dia ele chegou
animado. Corre-corre, pega-pega, rolamos no chão. Cinquenta minutos, é hora de
ir.
Vigorosa animação contagia
sua corrida. Seu pequeno braço, desordenado, choca-se com a quina da mesa. A
quina da mesa e o machucado em cicatrização. Meio segundo lento se passa entre
o momento em que imagino a dor vendo a “casquinha” sair de seu braço frágil e o
meu olhar se volta procurando a expressão dele. Breve silêncio e vejo seu rosto
se transformar e para o meu espanto, e
após puxar o ar, um grito:
- EU TAMBÉM SOU BRANCO POR
BAIXO!!!