segunda-feira, 16 de maio de 2016

Menino Sol- um conto de uma história real

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Estava ali, sentado no chão, aquele menino que tinha olhos brilhantes e molhados. Sua pequenez, sua postura e a tímida exploração da pequena sala mostravam quão singela era a doçura que havia naquele “clientinho”. Estava ali e não entendia o porquê. Explicar quem era  “A psicóliga”, como conseguia se referir à sua psicoterapeuta, parecia distante da real compreensão daquele menino que só concordava acenando que sim.
Teve medo de ficar com aquela estranha, medo que a mãe saindo da sala o deixasse com aquela estranha, medo do estranho que era aquilo tudo. Psicoterapia é coisa de dar medo até mesmo em adulto!
Tinha oito anos. Há pouco conheceu na prática o que seria ter uma mãe para chamar de sua. E um pai! Há seis anos viveu em abrigo, ou Lar, como costumavam chamar a Instituição que recebe crianças que foram separadas da família por decisão judicial, pois estão em situação de risco. Risco de viver com os pais. Não entendia quais riscos poderia correr com eles, mas o risco de não ter nenhum ele conhecia muito bem. Convivia com o medo e a falta.
Quando finalmente foi adotado, sentia tanta alegria de ter sua esperança realizada, tantas esperanças novas que podiam tornar-se reais, que tinha medo. Tanto medo! E agora, que tinha todos ali, pai, mãe, família, o que ele ia fazer? Como se comportar, como ser filho? Ter casa, um lar de verdade, um quarto, cama, brinquedos só seus, escola. Agora que as palavras tinham significado - lar, meu, nosso, família, limite, esperança – era difícil colocar tudo no lugar, sentimentos, comportamentos, relações, qual é o meu lugar no coração deles?
Então estava na escola e foi lá que os medos que eram grandes ficaram fortes... e brancos. Eram todos brancos. Professores, alunos, pais, paredes, todos brancos! E como não podia ser (mais) diferente, todos olhavam para ele. Em um instante, ele que até pouco tempo não tinha nenhum olhar, agora tinha todos. Medo. Era como se fosse o eclipse de toda aquela claridade, chamando a atenção de todos por ser negro, por ser um satélite tão pequeno e sem luz capaz de manchar o brilho de um astro vibrante e cândido. Sentiu-se ainda menor, diminuindo, diminuído. Ensimesmou. O mundo infantil (o interno e o externo) pode ser muito cruel.
E ali estou eu, “A psicóliga”, olhando aquele menino buscar com os olhos o seu lugar no tapete, o palco psicodramático, sem brinquedos. Seus olhos disparam para a porta quando ela está a fechar. Medo. Na cabecinha dele, o pensamento “- Será que serei abandonado mais uma vez?”. Pergunto se deseja que eu deixe a porta aberta e o convido para dar uma olhadinha para a sala de espera e certificar-se que sua mãe o espera, e que estará lá, até o fim. Sua mão miúda toca a minha, leve, fria. Confirma que sua mãe está lá e eu conquisto um ponto de confiança.
-Vamos brincar?
Seus olhos percorrem a sala em busca de brinquedos, e seu suave despertar de alegria se transforma em dúvida: -Com o quê?
Explico para ele que ali podemos brincar do que quisermos. Podemos ser quem quisermos, em qualquer tempo, passado, presente ou futuro. Podemos ser pessoas, ou alienígenas, como lá fora, na vida real, mas que principalmente, podemos ser também as pessoas e os alienígenas que quisermos ser, com poderes especiais ou simplesmente, diferentes.  Não demora muito e logo estamos representando papéis imaginários da vida real. Surgem lobos-maus, mundos a serem conquistados com guerras difíceis, demoradas, que por vezes tinham que continuar na sessão seguinte, mas que na sessão seguinte não tinham mais sentido. Reis, aviões, esconderijos. Falamos dos machucados, das brincadeiras, dos novos colegas.
Neste dia ele chegou animado. Corre-corre, pega-pega, rolamos no chão. Cinquenta minutos, é hora de ir.
Vigorosa animação contagia sua corrida. Seu pequeno braço, desordenado, choca-se com a quina da mesa. A quina da mesa e o machucado em cicatrização. Meio segundo lento se passa entre o momento em que imagino a dor vendo a “casquinha” sair de seu braço frágil e o meu olhar se volta procurando a expressão dele. Breve silêncio e vejo seu rosto se transformar  e para o meu espanto, e após puxar o ar, um grito:

- EU TAMBÉM SOU BRANCO POR BAIXO!!!