segunda-feira, 16 de maio de 2016

Amor empoeirado




Passou pela porta de entrada e foi como se já fizesse muito tempo desde que esteve ali pela última vez. Com o passar dos dias, semanas, meses (já não sabia mais, tinha perdido a noção de quanto tempo) as coisas, por falta de cuidado, foram tornando-se empoeiradas: as cadeiras, os vasos, o sofá, o que tornava aquele lugar familiar. Passou, passaram despercebidos. Os porta-retratos indicavam que alguém ali já tinha sido feliz, um casal, uma família que existiu. Ainda existe? Ainda existe. Mesmo sem saber o porquê, essa resposta parece ser a única, ainda que não lhe traga conforto. Caminha por ali, cansado, chegando do trabalho. Observa em silêncio. O descuido do dia-a-dia fez com que chegasse a este ponto de distanciamento. Não sente-se a vontade para sentar-se ali. Não enxerga mais. Não sente-se a vontade pra dizer à sua esposa, ali, no sofá, aquele “eu te amo”. Amor estampado agora encoberto. Esposa. Tanta intimidade. Conhece aquele corpo, o toque, mas não mais os sentimentos. Não mais seus sentimentos. Percebendo neste momento tudo que rodeia esta casa, reconhecendo num olhar atendo à TV um brilho singelo que há muito não percebia (não que não estivesse ali, mas que realmente não foi percebido), tomado por uma motivação estranhamente adormecida que lembra- se ter possuído no princípio de tudo, de súbito seu olhar se levanta e solta como quem fez uma grande descoberta: “Maria, levanta deste sofá! Está na hora de arrumar a casa.”